querermos cantar, querermos tocar, querermos escutar.

sábado, 28 de maio de 2011

Tiê, a alegre tecelã do dia-a-dia.


De primeira escutada, “A Coruja e o Coração”, o segundo disco da cantora paulistana Tiê parece uma natural continuação de seu primeiro trabalho, “Sweet Jardim”. O álbum lançado em 2008 era marcado por uma melancolia em músicas tristíssimas como “Te Valorizo”, “Assinado Eu” e “A Bailarina e O Astronauta”. Porém, em seu final, surgia a faixa-título, uma redentora canção que conseguia observar a beleza existente em períodos infelizes (”Esse perfume de alecrim / Trouxe de volta um sonho bom / Posso até olhar pela janela / E recitar “une petit chanson”) e parecia abrir caminho para uma época mais feliz. É nessa atmosfera que, dois anos depois, surge “Coruja”.
O universo referencial da cantora permanece o mesmo: paixões rápidas, flertes, chás verdes, passarinhos, varandas, saudades. Entretanto, musicalmente é como se ela tivesse “apertado o interruptor da felicidade”: no lugar de certo minimalismo “pra baixo”, calcado em piano, violão e voz (que se faz presente em “Coruja” na canção “Te Mereço”), seus arranjos soam, na maioria das vezes, mais alegres, com o uso de bandolins, acordeons, banjos, dobros e convenções de metais festivas. É um disco confortável, gostoso de ouvir, carismático, que segue a idéia de mostrar a realidade através de certas idiossincrasias do cotidiano.
Acompanhada por uma competente banda (liderada pelo produtor Plínio Profeta e com direito a participações especiais de Marcelo Jeneci e Hélio Flanders), é desse jeito que, de certa maneira, é possível sentir que Tiê continua a contar histórias comuns. Narrativas como as de dias nos quais deixou o tempo passar (”Na Varanda da Liz”, prima próxima de “Efêmera”, de Tulipa Ruiz) ou queria ficar alegre para compensar a ausência de “um alguém” (”Para Alegrar o Meu Dia”, dos versos: “Já que não te tenho por perto/Eu vou tomar um sorvete/Para alegrar o meu dia”).
Mas, talvez, os pontos mais interessantes do disco residam justamente nos momentos em que Tiê deixa de lado a composição e dedica-se à interpretação. “Só Sei Dançar com Você”, de Tulipa Ruiz, apesar de bonita, fica um pouco abaixo da versão original – mas mostra, de alguma maneira, um esforço de “conexão” entre trabalhos parecidos. Em “Mapa Múndi” (Thiago Pethit), o mesmo não acontece: a persona artística da cantora é muito mais próxima da canção do que a de seu compositor. É no fim do álbum, porém que aparece a melhor das regravações (e a melhor música de “Coruja”): “Você Não Vale Nada”, em arranjo flamenco e apresentação sincera – sim, leitor incrédulo, aquela mesmo canção do conjunto Calcinha Preta.
A presença dessa música no disco dá margem a uma tendência que vem se tornando muito interessante no cenário musical brasileiro: a coverização de clássicos bregas com arranjos inovadores, dando ares respeitosos a essas canções. Assim, é possível ver Leandro & Leonardo folk (com Giancarlo Rufatto), Raça Negra com aparência de Sade (via Letuce) ou Odair José muito próximo a Iggy Pop (versão de Paulo Miklos) sem que isso soe forçado – e muitas vezes, perceber que há uma poesia nessas canções.
É possível dizer que lidar com a quebra de preconceitos e a reabilitação de alguns artistas é um dos pontos-chave da geração que faz música hoje em dia. Talvez até mais do que isso: que o importante é misturar referências, sem se prender a rótulos e que nesse caminho busca-se fazer algo fora do convencional, que seja capaz ainda de chocar ou causar surpresa. Nesse sentido, Tiê se sai bem com o antigo forró: a canção não soa dissonante com as idéias que canta – ainda que a letra soe um pouco mais dramática do que o repertório habitual da cantora.
“A Coruja e o Coração” é um bonito álbum, pop e poético na justa medida. Ainda que habite o mesmo universo de outrora, a cantora traz novidades a ele e continua a representar com destreza seu papel de “tecelã do dia-a-dia”, na linha direta que descende de outras cantautoras como Carole King, Aimee Mann e Regina Spektor. Evocando o clássico clichê conceitual do “teste do segundo disco”, Tiê passa nele com louvor.

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