querermos cantar, querermos tocar, querermos escutar.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

A cena.

por MARIANO MAROVATTO.

Fiquei muito feliz em aparecer 3×4 na primeira página do Segundo Caderno do Globo junto com tantos amigos e pessoas incríveis que tanto admiro. A discussão levantada pelo Luiz Fernando Vianna é totalmente relevante, dada a profusão de cantores, cantoras, bandas e compositores extremamente talentosos surgidos nos últimos cinco-dez anos que representam – e representarão para as futuras gerações – a música brasileira do início do século XXI.
Acontece que, ao abrir a segunda folha do caderno, me deparei com as minhas declarações. Jesus, Mariano, que mau humor é esse? “Aqui acabou a música em processo”?! Meu filho, o que é “música em processo”? Mal lançou um disco e já está cantando de galo? Muitas coisas podem ter acabado no Rio de Janeiro, mas música (e em processo) temos de sobra. Logicamente, é uma missão complicada para o jornalista sintetizar um papo que rendeu dois telefonemas, mais de meia hora de conversa, num pequeno parágrafo. Acredito que o Luiz Fernando tenha conversado o mesmo tanto de tempo com os outros entrevistados da matéria e, se colocasse na íntegra o que cada uma falou, num mundo ideal (na internet?), o Segundo Caderno inteiro estaria tomado pela discussão.
O problema é que me senti um tanto bipolar e xenófobo da minha própria cidade perante a minha taquigrafada declaração, que não condiz com o meu trabalho na música. Lê-se aí meu disco, em que participam 32 músicos da cena carioca – a maioria deles presente na matéria –,e o “Segue o Som”, programa de TV onde todos os artistas retratados na primeira página (e também os citados ao longo do texto), sem exceção, foram entrevistados ou devidamente apresentados por mim e pelo Maurício. Concordo 100% com o Romulo Fróes, que disse que “a cena atual é uma das melhores da história da música brasileira”. E acho a mesmíssima coisa da cena da poesia atual. E não me engano. Sejam nos bons e nos maus talentos. A música evidentemente não acabou, ao contrário, ela está só começando pra mim e pra toda essa geração. Mas, estruturalmente, estamos longe do environment ideal necessário para bem nutrir todos esses talentos.
Falta de tudo na música do Rio? Sobra talento: Do Amor, Tono, Rabotinik, Letuce, Jonas, Qinho, Os Outros, Mario Maria, Rafael Cosme, André Carvalho, Silvia, Dimitri, pra falar dos mais próximos de mim nesse momento. Só com esses nomes temos um festival muito mais edificante do que o Rock In Rio 4. Sem falar nos mestres Domenico, Moreno, Kassin, Pedro, Rubinho, Löis, Hermanos e a Orquestra, norteadores da música carioca da década que acabou de passar. O que entristece é o potencial desperdiçado que o Rio de Janeiro tem de acolher bem as suas próprias novidades. O Do Amor, por exemplo, tocou em quase todos os estados do Brasil nos últimos dois anos, participou de todos os festivais relevantes e, como disse o Luiz, faz quatro shows no Rio por ano.
Citando novamente o Romulo Fróes, “o Brasil não expande, vai ficando cada vez mais em São Paulo”. Em matéria de infra-estrutura, São Paulo é incontestável e imbatível. Mesmo com seus problemas. E, naturalmente, quando há um mínimo de infra, é gerada uma reflexão, um pensamento organizado sobre o que está acontecendo. E isso não é novo por lá vai fazer 100 anos. Vide a Semana de 22, o projeto Concretista, o pensamento musical de Tatit e Wisnik e os argumentos pertinentes do Romulo. A praia carioca é a sua potência, sim. Mas não basta a aparência, a paisagem, o Corcovado, o filme da ararinha azul em 3D, as Olimpíadas e a Copa do Mundo. Não adianta construir uma utopia que, como já disse Caetano, a gente sabe que vai virar (e já é) ruína.
Fico feliz em ver, por exemplo, um festival de pequeno porte como o Festival Mundo em João Pessoa, onde há uma pequena e suficiente estrutura para receber e pagar os artistas e onde aparece um público interessado (e interessante). O Rio de Janeiro poderia fazer 10 festivais como esse por ano, movimentando os novos artistas, angariando público, gerando discussão e até lucro. Mas é mais rentável produzir um mega festival com um patrocínio milionário que, com certa razão, prefere ter sua marca associada a grandes nomes da música já estourados no mercado.
O Rio era o berço das grandes gravadoras e por isso havia um modus operandi musical muito bem resolvido por aqui nos anos 80 e 90. Acabaram-se as grandes gravadoras, é preciso agora botar a mão na massa e a cabecinha pra funcionar. Existem mil maneiras de movimentar dinheiro no novo mundo da música. Cada dia surge uma nova idÉia na internet. É preciso potencializar toda essa vitrine que o Rio de Janeiro é em pensamento cultural produtivo. Exemplos de empreendedores musicais, selos e sites cariocas não faltam. A cada programa do “Segue o Som” a gente apresenta alguém ou alguma proposta nova que esteja rolando. Talvez o primeiro passo seja simplesmente virar os holofotes para a cena do Rio e ouvir o que ela tem a dizer. Não é?

fonte: marovatto.org.

Renovação da música brasileira iniciada nos anos 1990 ainda não foi alvo de uma produção reflexiva.

por LUIZ FERNANDO VIANNA.

RIO – Hoje não se fala em Tiê, por exemplo, sem se falar em Marcelo Jeneci, Tulipa Ruiz, Leo Cavalcanti e outros tantos. É possível, portanto, ver a nova geração da música feita em São Paulo num só quadro. Mas é praticamente impossível encontrar reflexões sobre esse quadro e as condições que o formaram, ver suas relações com a também intensa produção do Rio, entender o papel dessa cena na história da música brasileira. Embora não tenha começado ontem, mas esteja num momento maduro, a turma que vem revitalizando a canção nacional não encontra, no ambiente acadêmico ou fora dele, quem a trate como tema prioritário de análises.
– Existe uma cena que começa no disco do Mulheres Q Dizem Sim (de 1994) e que tem no Los Hermanos a sua maior expressão – situa Romulo Fróes, decano (39 anos) da nova geração paulista e único ator da cena a escrever freqüentemente sobre ela, incluindo artigos sobre os cariocas Nina Becker e Domenico Lancellotti. – Como ninguém escrevia sobre a gente, eu fui escrever.
No texto "A nova música brasileira e seus novos caminhos", de 2009, Romulo mostra que a democratização dos meios de gravação resultou no domínio destes meios por parte dos artistas e, em seguida, na criação de músicas que justificassem tal domínio, pois "antes uma grande canção mal gravada do que uma bobagem de altíssima qualidade sonora".
– Mas ninguém precisava de nenhum endosso, queriam que os mais antigos se danassem. O movimento foi o contrário: Caetano (Veloso) se aproximou da turma ao montar a banda Cê (em 2006), e aí abriu os olhos de José Miguel (Wisnik) – diz Romulo. – Sinto falta de um diálogo com a geração surgida nos anos 1960, tida como a última grande da canção brasileira. Esse diálogo só se dá com Caetano.
Opinião semelhante é a de Domenico, parceiro e grande amigo do filho mais velho de Caetano, Moreno Veloso:
– Não tem nenhum outro que continue se arriscando assim.
O projeto +2, que os amigos fizeram com Kassin, já foi tema de tese na Argentina e palestras no Rio Grande do Sul, mas nada no Rio, segundo Domenico.
– A academia tem extrema dificuldade de lidar com o contemporâneo – afirma Frederico Coelho, historiador, DJ e pesquisador do Nelim (Núcleo de Estudos de Literatura e Música), da PUC-RJ. - Por um lado, investiga-se o funk, o rap, pois é o outro, o estranho. E há o vício de se trabalhar com a música dos autores surgidos na década de 1960. Para mim, que tenho 36 anos, a década de 1980 já é história.
Coordenador do Nelim e interlocutor frequente de Maria Bethânia, Júlio Diniz vê um "hiato" na produção acadêmica sobre a música brasileira.
– Praticamente não há reflexão sobre o que aconteceu nos últimos 20 anos – diz ele, anunciando para o segundo semestre um seminário na PUC sobre a nova cena musical.
Santuza Cambraia Neves, da PUC, e Fred Góes, da UFRJ, ressaltam que há muita gente estudando o momento, mas são grandes a diversidade de estilos e a rapidez das mudanças.
– Você há de convir que a academia é um pouco canônica. Mas, também, é normal que ela olhe coisas mais sistematizadas, para não ficar superficial, presa a modas – diz Góes.
Participante de muitas bancas, Diniz não vê um panorama mais pujante em São Paulo, lembrando que os trabalhos acadêmicos de Wisnik e Luiz Tatit não são lidos pelos fãs de suas composições. Para Frederico, no entanto, "São Paulo nunca parou de dialogar com a canção brasileira", e a cena atual agrada aos que procuram inserir novidades num painel histórico.
Especialmente em função do Los Hermanos, Wisnik e Arthur Nestrovski criaram o conceito "canção expandida", que serve bem aos artistas que estão se revelando: melodias e letras que digressionam, sem bases fixas.
– Sinto uma trajetória na minha música de desligar ou diminuir o sentido lógico das coisas – diz Marcelo Camelo, que, embora referência para eles junto com o também hermano Rodrigo Amarante, diz conhecer pouco os nomes que despontam em São Paulo.
Wisnik não enxerga "um estilo paulista, mas uma sensibilidade de época".
– Não acho que estejamos fazendo um acompanhamento crítico da movimentação de São Paulo. Se isso configura uma cena, é porque os músicos dessa geração têm feito eles mesmos que seja assim – acredita ele.
Tatit também não crê na necessidade de um endosso:
– Os trabalhos artísticos em geral são fenômenos que não dependem da crítica ou dos modelos analíticos, assim como as plantas, por exemplo, não dependem dos botânicos para que desenvolvam seu ciclo de vida. Portanto, não cabe ao acadêmico aceitar ou rejeitar uma "cena" ou um "movimento" musical.
A falta de uma reflexão crítica no Rio pode ter um fundamento econômico, pensam músicos como Romulo Fróes e Marcelo Callado. Com o fechamento de casas como o Cinémathèque, faltam lugares para que uma cena se dê fisicamente. A situação vem melhorando com os projetos Rival Mais Tarde e Oi Sonoridades, além da abertura anunciada do Studio RJ, versão carioca do Studio SP, sede dos novos paulistas.
Baterista de Caetano Veloso e da banda Do Amor, Callado diz que tem viajado com seu grupo pelo Brasil, mas só fez quatro shows no Rio.
– Temos artistas tão bons quanto os de São Paulo, mas os de lá se organizam melhor – diz. – O público daqui só se interessa por quem está estourado. E nós, músicos, somos um pouco da turma do chinelinho, não temos um pensador como o Romulo. Mas não me envergonho, é o nosso estilo.
Mariano Marovatto, que acaba de lançar um CD e faz doutorado na PUC, é mais duro:
– Falta de tudo na música do Rio. Talvez falte argumentação crítica por causa do comodismo. Aqui acabou a música em processo. As pessoas só vão aonde todo mundo vai. E o cara faz uma canção, vai à praia e já pensa que é artista.
David Pacheco registrará a nova cena carioca no documentário "A comunidade que vem", que rodará até outubro priorizando as bandas Do Amor, Letuce e Os Outros.
A coesão entre esses jovens é maior do que entre os da MPC (Música Popular Carioca), turma que a imprensa tentou rotular nos anos 1990: Pedro Luis, Farofa Carioca (com Seu Jorge), Boato e outros.
– Nós, os eleitos, fugimos, acho que muito pelo espírito libertário e múltiplo da reunião espontânea que assim quiseram batizar – lembra Pedro Luis. – A velocidade das comunicações jogou por terra qualquer possibilidade de movimento, no sentido clássico. Mas a crítica e a teoria estão na sua função, pois a História precisa de classificações.

fonte: o globo.

Eterna, com som de hoje.

por RUY CASTRO.

Quando Carmen Miranda entrou em um estúdio para gravar pela primeira vez, em dezembro de 1929, tinha 20 aninhos de idade. A gravação elétrica tinha dois. Ou seja, as duas estavam começando. Como em tudo que lhe aconteceria a partir daí, Carmen estava no lugar certo e na hora certa.
Sob o processo de gravação mecânica que, no Brasil, vigorara até 1927, talvez não tivesse havido Carmen Miranda - nele, as vozes e os instrumentos eram captados por uma espécie de megafone, e seus impulsos, impressos diretamente na cera. Nesse processo (acredite ou não, ultra-acústico), cantava “melhor” quem cantava mais alto - donde os artistas mais populares eram os cantores líricos, os detentores das grandes vozes.
Com a gravação eletro-magnética, tudo mudou: o microfone captava a voz e a transformava em impulsos elétricos, que permitiam amplificá-la de modo a não ser preciso gritar para sair no disco. E não importava o tamanho da voz - o microfone pegava tudo.
No Brasil, dois cantores foram os primeiros a se beneficiar da inovação: Mario Reis, em 1928, e, um ano depois, Carmen Miranda. Mas não me entenda mal. Como Mario e Carmen demonstraram à perfeição, o microfone era um aliado do grande cantor, não um álibi para o não-cantor. Ele não viera para dar voz a quem não tinha – mas para valorizar o timbre, a afinação, o ritmo e, principalmente, a bossa de quem tinha. E bossa era o que não faltava a Mario e Carmen.
Com a diferença de que o fino e chique Mario parecia tímido e inseguro no começo e Carmen, menina da Lapa, logo de saída demonstrou um à-vontade, um domínio e um humor, como cantora, que só podia ter explicação no sobrenatural.
Aquele primeiro disco [um 78 r.p.m., com uma música de cada lado] fora gravado na Brunswick. Mas esta não soube avaliar o que tinha em mãos e deixou que Carmen lhe escapasse e assinasse contrato com a Victor, onde estourou de saída com duas marchinhas para o Carnaval de 1930: “Iaiá, ioiô”, de seu mentor Josué de Barros, e a consagradora “[Taí] Pra você gostar de mim”, de Joubert de Carvalho. Seguiram-se anos de estrondo no selo do cachorrinho, em que Carmen se tornou a grande personalidade feminina da cena nacional, até que, em 1935, na maior transação da música brasileira, ela se passou para a Odeon. E, por incrível que pareça, teve ali uma carreira maior ainda. São deste selo, de “Adeus batucada”, de Synval Sylva, em 1935, até “Recenseamento”, de Assis Valente, em 1940, as matrizes remixadas acusticamente por Henrique Cazes em Carmen Miranda hoje.
Naqueles cinco anos, Carmen consolidou sua posição de principal nome do disco e do rádio no Brasil, tornou-se a maior atração dos nossos primeiros filmes musicais [com destaque para Alô, alô, Carnaval!, da Cinédia] e foi a primeira cantora brasileira a se apresentar e ter contrato fixo com um cassino [no caso, o da Urca], abrindo o caminho para todas as outras [até então os cassinos só queriam saber de atrações estrangeiras]. Nossa dívida para com Carmen já era enorme, impagável - antes que, em maio de 1939, ela partisse para Nova York, contratada por um empresário da Broadway, para estourar também no mercado americano.
Mas, nos Estados Unidos, o estouro de Carmen foi de outra ordem. Impossibilitada de levar com ela seu principal instrumento – o domínio da língua portuguesa, que lhe permitia transformar sambas como “...E o mundo não se acabou”, “Uva de caminhão” ou “O samba e o tango” em obras-primas –, ela teve de se valer mais de seu gestual, expressões, indumentária e graça. A cantora ficou em segundo plano, ofuscada pelo brilho de sua personalidade, dos adereços e das alegorias.
Mas não entre nós. A “nossa” Carmen pode dispensar as bananas e ser, apenas e simplesmente, a cantora que inventou tudo e da qual todos os cantores de bossa brasileiros são devedores. Talvez por muito tempo esta dívida tenha ficado obscurecida pela qualidade técnica das gravações originais – perfeita para sua época, mas precária para os ouvidos modernos –, que sufocava o acompanhamento em função do cantor ou vice-versa. E ela própria, falecida em 1955, nunca pôde regravar seus sucessos com técnicas mais avançadas, como tantos fizeram.
Este remix por Henrique Cazes nos traz Carmen de volta, mas com uma sonoridade de hoje. Como se aquele fabuloso acompanhamento que veste a sua voz – ambos finalmente equilibrados – tivesse sido gravado outro dia. O que, na verdade, foi.
a dança (la danse), de henri matisse e esculpida por alice pittaluga, no jardim botânico (RJ).

quinta-feira, 28 de abril de 2011

refazendo tudo.

o silêncio do som.

às vezes eu não entendo essa cidade. tudo é sempre calor e sol, radiação e irradiação por todas as partes, calor humano até demais. mas é só ameaçar chover e a cidade toda pára. e estava eu, no ponto de ônibus, esperando e esperando. e passou de tudo, desde carro do correio a caixa forte. até trator passou por mim e não me levou aonde eu queria. mas tudo bem. enquanto eu esperava, fiquei ouvindo o som dos motores, do vento chacoalhando as folhas das árvores, dos passarinhos que por ali voaram e também a melodia confusa e desconexa das falas das pessoas. ah, são tantos signos que eu já nem sei mais se o que eu ouvi foi som ou silêncio. afinal, não se diz que a interferência de ondas pode, também, ser destrutiva? do caos urbano, fez-se o silêncio. e no silêncio, eu esperei.